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um blog da diáspora blasée

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Setembro 19, 2009

 

(O Pin foi criado, com muito amor,  nesta casa e é para ser roubado, claro.)

 

 

O pecado mora ao lado 
 

Aviso prévio: este é um texto escrito em plena segunda adolescência. A segunda adolescência é uma coisa que dá a algumas pessoas mais ou menos a partir dos 35 anos e não se sabe exactamente quanto tempo vai durar. Durante esta crise costumamos padecer outra vez por não sabermos muito bem o que queremos, onde estamos e para onde vamos. Também perdemos todo o bom senso e objectividade e, às vezes, cometemos grandes loucuras,  sempre amorosas. Eu quase voltei a fumar, só porque comecei a acreditar que ficava sexy de cigarro na mão.  

Só os imbecis não têm e não nutrem as suas obsessões. Eu vivo às voltas com as minhas, e ser ou não ser fiel é uma delas: um bicho de sete cabeças. E para começo de conversa, vou já dizendo que acho a fidelidade amorosa uma impossibilidade: uma teoria tão utópica, capaz de fazer tanto mal às pessoas e provocar tantas atrocidades às suas relações, como o comunismo e seus gulags fizeram com os moscovitas que ainda hoje cambaleiam na praça vermelha, conservados em vodka. 

Curto e grosso: a fidelidade não é uma coisa natural. Não é natural porque qualquer  experiência amorosa é uma coisa fugaz e provisória. E se no início de uma relação as pessoas estão tão apaixonadas que não desejam mais ninguém, o tempo de convivência e os excessos da intimidade - os puns, os cocós, as tampas de sanita, as meias pelo chão, o mau hálito,  os Ob´s em cima do balcão da casa de banho (peçam-me para parar, please)  - são obstáculos à continuação dessa loucura a que costumamos chamar enlevo ou enamoramento. O Francesco Alberoni explicou-me isso nos bancos da Escola Secundária de Benfica, quando na escola ainda havia ciganos e eu achava que o meu primeiro amor - um cigano esperto - ia ser eterno.  É que nem cheguei a ter que viver tanta intimidade, porque  os pais dele fizeram o favor de lhe colocar um dente de ouro. E eu fiquei totalmente baralhada porque tinha perdido a vontade de lhe dar beijinhos e, enquanto procurava uma explicação para todo aquele repentino desinteresse erótico, fui dar de caras com o Vinicius de Moraes e aquele verso final do Soneto da Fidelidade: “Mas que seja infinito enquanto dure”. Tenho feito dele a minha doutrina desde aí.  Cada vez que me caio de amores pergunto logo: Já leste o Vinicius, não?  

Uma relação dá trabalho - porque dá trabalho andar a par,  todos sabemos que sim (Elisabeth Badinter  diz que andar a par está perto de um negócio) - e na maior parte das vezes é uma tarefa hercúlea para a qual a nossa preguiça não está preparada, assoberbados que estamos pela falta de tempo e pela facilidade com que hoje encontramos tantas pessoas especiais e estabelecemos novas relações ( Boa Sorte, Vanessa da Mata).  E também porque, quando finalmente pomos mãos à obra,  esse trabalho de construção ou reconstrução necessárias descamba muitas vezes naquela aproximação pidesca onde já não estamos ali a construir nada mas sim a vigiar ou a cobrar episódios nos quais por amor à fidelidade usámos de alguma contenção - como naquela noite a dançar na discoteca Help -  e por isso nos achamos no direito de nos tornarmos no  Homem do Fraque. 

E então isso já não é nem fidelidade, nem construção, mas um excelente trabalho de vigilância em relação aos afectos do outro, uma fidelidade credora que faz com que muitas vezes desviemos  a atenção de alguém muito interessante que surgiu ali ao virar da esquina. I know, I’ve been there e é uma merda. Quando fico nervosa falo línguas estrangeiras. 

Eternos  monogâmicos só  os pombos do Rossio e - sei lá porquê - a esses habituei-me desde pequena a dar pontapés. E isto tudo estará explicado naquela música do Dorival Caymmi  que parece que não tem nada a ver, mas tem: “Você já foi à Bahia, nega? Não? Então vá. Quem vai ao Bonfim nunca mais quer voltar”. Num qualquer dia de um qualquer mês de um qualquer ano, faz-se luz e avançamos no vazio, e voltamos a procurar ser fiéis ao corpo e à alma de um outro qualquer ser - e tudo volta a fazer sentido, muito mais sentido depois de se ter ido à Bahia.  

Mas radicalismos destes exigem uma revolução, porque dá um medinho danado mudar tudo: mudar a escola dos putos, viver cada um para seu lado com menos guito, deixar de ir de férias para a Bahia (ai meu deus), sair da casa onde gostamos tanto de receber os nossos amigos. Vá de retro Satanás. Venha daí a fidelidade, seja lá o que isso for.

Nada contra às pessoas que ainda partilham a ideia romântica da exclusividade sexual, a quem admiro intensamente a força de vontade.  Mas para mim esse é um ideal de vida capaz de levar à esquizofrenia: viver controlando os impulsos por meses e meses para depois, ainda, quando tudo parece ter repousado, passar o resto das noites em claro quando os fantasmas reaparecem muito no escuro da noite, naqueles minutos em que nos viramos para o lado e nos preparamos para adormecer. Espero intensamente que isto seja uma fase de muito corpo e pouca cabeça, ou antes pelo contrário (como é que é mesmo: “our mind is the most erougenous part of our body”?).  

Acredito que sim e que como isto é tão bom, qualquer dia haverá comprimidos para a infidelidade também. As maravilhas da medicina hão-de tratar de nós, chupar-nos até ao tutano e acabar com a nossa devassidão, ou torná-la  very light. Havemos de deixar de ser pecadores à força de comprimidos que engordem à brava e ficar tão cinzentos como os pombos lá do Rossio. E no fim perderemos todo o picante.  Num cenário dantesco destes e para piorar ainda mais as coisas, ando doidinha de Inveja do Pénis (nunca pensei escrever pénis num texto) e tenho-me  especializado numa forma diferente de estar que é aquela conhecida por pensar com a pila. Oiçam: é claro que o clítoris é uma pila mal desenvolvida e portanto também podemos pensar como eles, se bem que em mais pequenino.

Tendo dito tudo isto, não se pense que  sou contra o esforço que a fidelidade exige. Sou  só contra levar uma vida com palas nos olhos apenas porque nos dizem que isso é que é o certo,  só apreciando o santinho que cada um de nós tem no respectivo altar e mais nada, sem dar uma olhada que seja, ou um amasso (desculpem o brasileirismo) em santo alheio.  Ou então nos santinhos que não têm seguidores e andam exaustivamente a pregar aos peixes à espera de um dia serem catrapiscados (é fácil identificar um santinho sem dono: está sempre com um livro debaixo do braço). 

O Padre António Vieira, por exemplo,  que já está morto e portanto não vai levantar suspeitas quanto ao meu tipo de santo, teria sido uma tentação para mim. Porque sou uma alminha fraca e  não resisto a um flirt cheio de palavras e coisas nas entrelinhas: “toma lá isto que te digo como quem não quer a coisa e agora fica dois dias com o pipi aos pulos a  pensar em mim e no que te disse”. Não querendo ferir susceptibilidades, eu é mesmo assim que fico sempre que releio o Sermão aos Peixes. Flirto que nem uma doida com o padre morto. Para mim isto é traição? Claro que sim: toda  caidinha  por uma alminha que não a oficial, comendo as palavras do homem.  Se ele fosse vivo não me escapava, que a vida é tão curta que estou certa que o pecado seria privá-lo das nossas conversas.  Felizmente alguns homens acharão que conversas não se enquadram na lista de infidelidades

( talvez não os leitores do i). A esses homens eu chamo os defensores da Teoria Bill Clinton, a do “fumei mas não traguei”, aquela que defende que quando a pila não entra em lugar nenhum (animais e bocas são lugares nenhuns), a fidelidade mantém-se intocável. Errado. Pelo que a Teoria Bill Clinton só vem trazer confusão e reforçar a ideia equivocada de misturar sexo e fidelidade. Isto é, sem  o nham nham nham do  intercourse  ninguém foi infiel. Ridículo.  Neste casos  é conhecida a condescendência dos homens uns para com os outros e até para com as mulheres.  Sem intercourse ninguém fica magoado achando que o parceiro preferiu acrobacias alheias. Portanto não há aquela sensação chata de inferioridade sexual, que dói a valer. Há uma cena muito boa no Closer, de Mike Nichols, entre a Júlia Roberts e o Clive Owen que ilustra bem isto, mas nem sei porque refiro aqui esse momento: não tenho um amigo que tenha gostado dofilme.

A minha teoria – uma teoria que não é minha e já vem aparecendo em vários estudos - é que, em pleno século XXI, as pessoas, além de desejarem estabilidade nas relações, também gostariam de ter mais possibilidades amorosas e mais criatividade sexual e emocional, seja lá o que isso for, e  felizmente  a durabilidade das relações passou (para muitos de nós) a ser um ideal e não uma obrigação.

E finalmente chegámos onde eu queria, a uma coisa fantástica que os malucos dos americanos inventaram e que  chamam o Poliamor. Ora o Poliamor não é mais do que  aquilo que acabei de referir no parágrafo anterior: um conceito que exprime a possibilidade de várias relações amorosas ao mesmo tempo. Isto é, eu posso deixar de ser uma miserável sentimental sem que com isso a culpa caia em cima da minha cabeça, como o céu em cima da cabeça dos gauleses.  A mim parece-me que a  vida seria bem mais  feliz dessa forma. Se podemos amar muitas pessoas porque ficar contentes com uma só? A minha filha tem quatro namorados. Como vou ser uma sovina amorosa ao pé dela?  Talvez esteja a viajar na maionese. Mas até ver tudo isto me parece uma utopia muito mais compensadora que a do camarada Karl.  Não se preocupem. Vou dando notícias do front. 
 

Em cima da cama durante estes dias: 

Textos: 

A Dama do Lotação, Nelson Rodrigues

Padre António Vieira, Sermão aos Peixes

António Sousa HomemComo Pecar Sem se Sentir Pecador

Vinicius de Moraes, Soneto de Fidelidade

Regina Navarro Lins, A Cama na Varanda

 

Música:

Blondie, Heart of Glass

Vanessa da Mata e Ben Harper, Boa Sorte

Jamiroquai, Cosmic Girl 


Filmes:

Mike Nichols, Closer

Billy Wilder, O Pecado Mora ao Lado

 

publicado hoje na Revista Nós, do "i"

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