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Setembro 30, 2009
Adeus Slazenger
Dentro das quatro paredes do deslavado consultório do meu analista, eu pago para ser um monstro e sou.
Aquilo é uma guerra. Outro dia disse-lhe que o consultório dele era deprimente, só para o irritar, depois de ele me ter atirado à cara que eu não cresço desde o tempo em que queria ser a Agnetha dos ABBA, no Verão de 79. E ainda quero, mas ele não sabe. A conversa à quarta-feira cansa para burro e põe-me o resto da semana no meu devido lugar: um lugar qualquer muito escuro, mas sem pipocas ou drops de anis. Uma pessoa sente-se emocionalmente exausta só de tentar entender as entrelinhas, como no filme mexicano que passou ontem aqui - que, para além da infelicidade de ser um filme mexicano falado em sueco, ainda aspirava ser um filme do Carl Dreyer.
Para fugir um bocado a isto (porque ninguém aguenta tanta baba e ranho), passo a maior parte dos 45 minutos das minhas consultas a imitar outras pessoas de quem gosto ou invejo, tentando parecer mais interessante do que na realidade sou e simulando sofrer de maleitas bem menos mesquinhas. Invento imensas manias que não tenho, mas que acho deveras interessantes pois lhe despertam comentários profundos sobre mim, e falo muito e muito rápido, dado que tenho um problema com os silêncios incómodos. Mas na última sessão ia decidida a dizer-lhe que, pronto, ok, estava cansada de me odiar tanto e que agora até já me sentia preparada para gostar de mim - mesmo não sendo a Agnetha e não tendo aqueles dois dentes separados à frente (perguntei-lhe se podia, então, ser a morena) - e que finalmente também já não queria ter o corpo perfeito da minha mãe aos quarenta, e, melhor ainda, que tinha deixado de querer ser a menina dos olhos do meu pai (desde que me mantivesse a menina dos olhos do meu editor) e que portanto podia dispensar os seus serviços e deixar de lhe pagar aquela nota preta. Que tinha sido muito bom enquanto tinha durado, mas que o nosso tempo acabava ali. Esta frase - a do tempo que acaba - aproveitei de um namorado que uma vez me disse tal enormidade só porque tinha jeito para as palavras e muita vontade de me deixar de rastos. E eu, quando me curei dele, sempre a quis devolver, mas entretanto o giro morreu atropelado por um buldozzer - maneira horrível de se morrer - e quem levou por tabela foi o médico, quando lhe disse à boca cheia: “Então agora é adeus Slazenger, fique bem que eu também. O nosso tempo acabou.” Pimba.
Depois recostei-me no sofá de linóleo e isso fez com que se ouvisse um infeliz barulho de pum- o que me deixou ainda mais aflita, enquanto esperava o chilique dele.
Analistas também têm dificuldade em gerir emoções, só que as pessoas normais acham que não porque eles disfarçam bem. O meu costuma ficar muito branco e coça os genitais ( analistas não têm pilas, têm genitais) e acha que eu não percebo que só faz aquilo quando fica nervoso ou irritado. Acontece que ele não teve nenhuma dessas reacções. Simplesmente perguntou: “Então vai querer falar do quê? Apesar de você achar que não, ainda temos tempo”. E eu respondi, querendo chocá-lo na sua constante vontade de objectividade: “Quero contar-lhe que fui ver a minha Mãe de Santo e que ela me avisou sobre a inveja. Viu tudo lá nos búzios e me mandou tomar uns banhos protectores” . “Uns banhos protectores de si mesma, imagino” - acrescentou ele, algo irónico.
Acredito que ache inaceitável ter uma paciente que se consulta com ele e ao mesmo tempo com uma Mãe de Santo, mas porque é um chato sempre politicamente correcto, nunca mo disse. E ainda bem que a sessão já era a esta altura, pelo menos para mim, uma batalha campal.
“Pensei que já tínhamos ultrapassado essa coisa de achar que só os outros têm vidas perfeitas, mas vejo que não” -acrescentou com um risinho.
Achei que me ia obrigar a repetir o mantra das primeiras sessões há uns anos, quando eu ainda achava que ele me ia salvar de mim e tinha uma fé nele maior que em Deus Nosso Senhor: “Não há pessoas perfeitas, não há pessoas perfeitas, não há pessoas perfeitas”, pois não? E eu acabava a dizer que sim muito bem mandadinha sem convicção nenhuma e , sem nenhuns tomates (outro dia falarei da minha inveja do pénis) para lhe gritar que - apesar de me parecer plausível que não houvesse pessoas perfeitas - me era impossível negar que a Luana Piovanni andou lá perto, naquele ensaio para a revista TPM em Março de 2003, e que - além de a invejar a ela - invejava a perfeição tropical all over das meninas do vôlei de praia todas as manhãs, e que além disso também sentia inveja dos velhinhos que puderam viver a harmonia de Copacabana sem assaltos, nos anos 50, e os menos velhos que viveram a bossa nova em Ipanema, nos anos 60. E que invejo muito quem não sente ciúmes, e quem tem mãos bonitas, e os escritores que conseguem escrever concentrados por horas seguidas sem espreitar o email. E que sinto raiva de quem não ressaca aos Domingos de manhã e às nove já está sentado no café, à sombra do toldo, ouvindo passarinhos e a ler calmamente a crónica do João Ubaldo.
Que nunca saberei o que é ser a Fernanda Montenegro debaixo de aplausos histéricos, depois de mais uma apresentação fantástica no teatro Leblon, e que isso também me deixa, aligeiremos, nervosa, e que sinto inveja dos livros bem escritos que nunca vou conseguir canibalizar e das crónicas todas do MEC que nunca vou saber escrever porque não entendo a subtileza do Samuel Beckett. E que fico dias sem ler blogs de quem escreve muito bem, só porque sou uma invejosa de primeira. E que gostava muito de ter a força de vontade do Senhor Morais que já foi dono da maior casa de gelados da Zona Sul e perdeu tudo, tudo, e agora vende os picolés do Morais (os melhores) numa carrocinha em frente à Igreja Santa Mónica, na Avenida Ataúlfo de Paiva. Não há pessoas perfeitas, mas isto daria direito a um lugar bem bom se a vida fosse justa.
Que tenho inveja de quem é organizado com o dinheiro e de quem sabe o que quer da vida e de quem aprende rápido a andar de patins no gelo, como a Meg Ryan a patinar no ringue do Central Park com o amor da sua vida, pelo menos naquele filme.
A inveja e a ressábia são os sentimentos mais merdosos que podemos ter, deitados num divã qualquer muito duro, com a cabeça em cima de um guardanapo de papel (para não deixar marcas na almofada dos outros) e cheios de uma peninha imensa de nós próprios.
Hei-de sempre ser a tradução daquela frase fantástica: “My one regret in life is that I am not someone else.” Como diz o Miguel Marujo, a quem invejo bastante o bom gosto na escolha de certas mulheres que lhe povoam os sonhos: “há quem se encontre nos filmes do Woody Allen”.
Terminámos, doutor?