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um blog da diáspora blasée

1977

Novembro 14, 2009

 

 

“Aldeia da Roupa Branca”

 

 

 

Eu tinha por volta de uns seis ou sete anos a primeira vez que ouvi a palavra Marialva. Ia a descer a Alameda D. Afonso Henriques de totós e vestida com um Kilt que eu odiava e me picava as pernas, de mão dada com a minha avó Luísa.

 

A minha querida avó pesava 42 quilos, tinha um metro e quarenta e nove,  vestia sempre com muita elegância – nesse dia também-  calçava uns sapatos pretos de verniz número 33, que mandava fazer todos iguais e com cinco centímetros de salto a um sapateiro da Baixa e pintava o cabelo de um dourado que nunca me cansava de admirar e que ela mantinha intacto ao vento da Alameda e de Lisboa com imensa laca Elnett  Satin, da Loreal. Aliás, o cabelo da minha avó tinha a mesma cor dourada da dita lata  de laca e quando eu estava com ela, as minhas roupas, os meus cabelos ruivos, os meus sapatos, as minhas calcinhas... Tudo em mim, eu toda, acho que ficava dourada por osmose. Lembro-me muito dela com os cinco ganchos com que me ajeitava os totós na boca, puxando o meu cabelo e pedindo-me que ficasse quieta, que todo aquele desprazer era para eu ficar bonita e que era importante ficar bonita e que sofrer para isso também fazia parte, A menina vá-se habituando.

 

 

O meu avô que ia sempre um bocadinho mais à frente que ela na rua, nesse dia ia ao lado, no seu andar peculiar, que eu também herdei e não direi como é, com o jornal Correio da Manhã em que ele gostava de fazer as palavras cruzadas debaixo do braço.  E enquanto ele falava eu sentia-lhe o perfume a after shave Acqua Velva que eu gostava tanto mas nunca me atrevi a dizer-lhe.  E foi ele  quem disse, desdenhosamente, a meio caminho entre casa e o Império, a propósito do Artur Monchique, Esse senhor é a um Marialva, Luísinha e ponto final. Tendo ela, agarrado com força a minha mão e feito aquela coisa que as mulheres da minha família sempre fizeram muito bem que é fingir que concordam só para não haver chatice e depois passar-se à acção desenvolvendo o raciocínio contrario.

O senhor que eu achava o máximo da elegância e simpatia e frequentava o número onze, segundo esquerdo da Alameda em dias festivos, prontificando-se sempre para ir buscar e levar as tias Adelina e Ivone a casa  no seu lindo BMW preto; esse senhor, era um Marialva, ponto final.

Nesse dia eu só fui capaz de entender que ser um Marialva não auspiciava nada de bom, apesar da palavra me parecer lindíssima,  porque o meu avô comentava desdenhosamente -  naquela cumplicidade que têm os casais de há muitos anos e que já passaram do tempo de pensar neles -  os modos ociosos e extravagantes do amigo,  ali  os expondo, cada vez mais exaltado. E mais exaltado ia ficando porque até chegarmos ao restaurante onde íamos,  sempre, almoçar aquele  bife delicioso com batatas fritas e molhanaga,  a minha avó foi, surpreendentemente, defendendo o amigo comum, apontando aqui e ali características que  ainda hoje  me agradam nos homens e  que ele tinha -  a gente sabe lá porque é logo assim tão parva aos seis anos -  a saber, que ele era atencioso, que fazia coisas que os outros homens não faziam,  que apesar de ser como era, isto é: rico, exagerado, um tudo nada fadista, namorar a Isabel, empregada dos meus avós, sempre que ninguém estava a ver,  todas as maçanetas das portas da casa e quiçá algumas espanholas nas viagens a Granada, era um homem de gestos elegantes e que sabia, como ninguém, comportar-se á mesa. Mas isto é uma história. Outra história que não pode ser vista aqui como um acaso é que trinta anos depois, numa noite de Inverno gelado, eu tive  um  ataque de ciúmes naquele mesmo lugar  por causa de umas tâmaras que descobri que o meu amor tinha ido  ingerir a Marraquexe com uma amiga. 

O marialva da minha vida numas coisas não chegava aos calcanhares do Artur Monchique - também os tempos eram outros - mas noutras excedia-o e por isso me fazia tanto bem e tanto mal e eu gostava dele à bruta e à brava como decerto ele gostava de tâmaras.  Cada mulher tem o marialva que merece. 

O meu ia dando cabo de mim mas era giro e amava à maluca e gostava de touradas e garraiadas e tinha uma encantadora mania que era bom... E era. E era também um womanizer,  o que fazia dele um marialva falsificado ou de segunda ou, como diria  o Cardoso Pires se me tivesse encontrado para uma converseta: “O teu marialva  não passa de um subproduto do nacional marialvismo.”

Verdade, verdadinha. Porque nele se misturavam em pequenas doses,  libertinagem, o cinismo típico dos privilegiados ou dos aristocratas, sei lá, a que eu – muito burguesa -  achava imensa piada e era dotado entre outras merdas, de que nem vale a pena falar,  de um estado de alma muito sui generis que misturava sempre saudade com outra tristeza qualquer e que aos meus olhos o transformava  num caixeiro viajante  de visita à família (eu) e  lhe dava o ar apetecível das coisas perigosas e difíceis.  Tão difícil que só podia acabar mal. E acabou porque infelizmente ele adorava e tinha um fetiche com  o D. Francisco Manuel de Melo,  marialva a sério, que escreveu em 1650 a Carta de Guia de Casados e de quem o T. era ainda era parente, por parte da família do pai e que mandava aos homens evitar pessoas ligadas aos “quatro costados da doudice”: A música, a poesia, a valentia e o amor.

Ora eu sempre tive a mania de escrever sonetos e também me dá na veneta cantar e por isso  cantava para ele fados da Severa o que sem dúvida o levava a pensar que era o  quarto ou quinto Conde de Vimioso (eu canto muito bem) ao volante do seu BMW branco cabriolet,  cem mil quilómetros, enquanto eu, nos intervalos, o ouvia declarar o horror às laranjas e aos leites espanhóis que invadiam os supermercados portugueses.  Para falar desses assuntos usava palavras como jigajoga, maricas, chochinhas, lambisgóia e ginete. Quem é que podia resistir a um homem assim? Blame it on Artur Monchique, certas coisas nunca mudam.

 

 

 

Publicado na revista Nós Marialvas, do i.

 

 

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